Guimarães Rosa

Nessa sala conheça a vida, a obra, as inspirações e depoimentos de um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos.

O Ipê rosa florido no centro da sala representa os Sertões de Guimarães Rosa. E, como lembrança, o visitante ainda pode levar para casa uma flor com trechos de sua principal obra.

 Imagem: Elcio Paraiso

O sertão em Guimarães Rosa

Assim é o estado de Minas Gerais, que traz, já no nome, dois universos que parecem opostos mas não são.

Minas é o rosário das cidades nascidas ao longo dos caminhos talhados pelo ouro e diamantes em direção ao mar, por onde a metrópole se ligava ao interior. É o mundo da ordem.

Gerais é o interior, a ausência de governo, o espaço vazio, a fronteira aberta, a inexistência da ordem.

No século 18, os sertões gerais eram as terras escondidas do Brasil, a área sem mineração, o deserto, a ausência de povoamento, domínio do desconhecido.

O sertão, o sertão das Gerais, o sertão de Guimarães Rosa, é o espaço existencial onde se procura o sentido da vida.

Para entrar no sertão é preciso compreender seu espaço e tempo. Em Grande Sertão: Veredas o sertão é dividido pelo rio São Francisco em duas metades de naturezas ambivalentes: a terra inóspita e o paraíso, onde convivem a mandioca-brava, que mata, e a mandioca-mansa, que alimenta.

Diz Guimarães Rosa que o São Francisco partiu sua vida em duas partes, tal como, partido, é o sertão por ele descrito: o lado direito, nítido, é o lado do fasto, do amor e do normal; o lado esquerdo, do nefasto, do estranho, do Hermógenes, do pacto com o diabo.

No meio dos opostos, o Rio é o território da travessia, do ir e vir, a terceira margem por onde nos movemos, onde o mito e o pensamento se misturam conectando as duas margens do sertão.

No sertão, “tudo é e não é”. Tudo que nele é bonito é também, de alguma forma, absurdo. “O sertão é do tamanho do mundo”. Nele, tudo cabe, e sua realidade é móvel, mutante e transformadora.

“Sertão é o sozinho”, é o dentro da gente; “é o sem lugar”. Um “mundão de ausências”, “uma espera enorme”. Uma falta que sempre, e de repente, volta a rodear a gente por todos os lados.

Nesse espaço, belo e absurdo, os paradoxos convivem, como em Diadorim, mistura de Diabo e adorável dia em mim, convivem carne e espírito, calor e frio, problema e solução, silêncio e saída.

Diadorim, o masculino e o feminino encarnado na mulher que se faz passar por jagunço macho, se torna objeto do equívoco e impossível amor de Riobaldo, o herói de Grande Sertão: Veredas.

No eixo líquido do rio, Riobaldo encontra Diadorim e, na neblina desse amor, no “descanso na loucura”, o ser humano pode entrever-se, encontrar-se ou perder-se.

No sertão, tudo está por se fazer ou por se perder. No Sertão, o ser humano é um ser provisório, muito provisório, a se perguntar o que nunca se sabe com certeza.

No mundo-sertão onde habita, o jagunço é também contraditório, sempre em movimento e transformação incessante.

Sua vida é sempre um exílio de si mesmo, encontro e desencontro, reconhecimento e estranhamento, entre a esfera universal dos valores e a esfera particular da existência.

Sua vida é um vazio enorme e incompreensível do qual só podemos conhecer algumas “veredas”.

Deus e o Diabo são as duas entidades que comandam o vazio do sertão, e nosso movimento e pensamento nele.

Um não existe sem o outro, assim como o masculino e o feminino, o direito e o esquerdo das margens do Sertão não existem independentes um do outro, são forças antagônicas e complementares e só assim existem

O diabo é onde vivem as tensões da alma e o mistério inexplicável do mundo onde a razão não entra. Ele é o nada.

Atravessa-se o Sertão tomando conta dele por dentro. Só podemos nos construir plenamente se reconhecermos o sertão dentro da gente, sertão que a princípio a gente estranha e acha que é outra coisa, mas é nós mesmos.

 

 

 

Escritores mineiros

Texto de Reinaldo Martiniano Marques – UFMG

 

“Minas são várias”, já o disse Guimarães Rosa. Não é de se estranhar que heterogêneas sejam as imagens de si mesma forjadas por uma Minas literária. Na sua diversidade histórica e geográfica, Minas Gerais se construiu como espaço intercultural, lugar de encontro e fricção de culturas e tradições, de negociação de diferenças culturais, políticas e históricas. Nela, seus rasgos mais particulares e locais estão atravessados pelo que há de mais cosmopolita e universal. Daí que, ao se mergulhar naquilo que tem de mais peculiar e próprio, se atinja o mais universal e cósmico. Uma Minas encravada no tempo, mas ao mesmo tempo transtemporal. Com suas diversas histórias, paisagens geográficas e culturas, Minas é também polifônica. Irredutível a esquemas unitários e homogeneizantes.

Na composição de seu museu imaginário, cabe acionar uma perspectiva polifônica da memória literária e cultural, capaz de acolher tanto suas manifestações visuais, em interação com os artefatos verbais, quanto suas formulações mais eruditas, em comunhão com o popular. Três momentos de nossa história cultural se destacam: o do século 18, marcado pela voz do ouro e da liberdade, própria de uma Minas insurrecta e conspiracionista; o do século 19, caracterizado por uma voz rural e sertaneja, tradicional, marcada por sua expansão agrícola, quando do ciclo do ouro só ficaram restos – as grupiaras; e o do século 20, do ferro e da indústria, momento de uma Minas tipicamente urbana e moderna. Em cada um desses momentos, convivem e interagem esquemas e resíduos dos momentos anteriores, que são relidos e reinterpretados segundo complexos processos de reescrita e reinvenção. É possível inventariar em cada momento escritores cujas obras e biografias compuseram tanto imagens emblemáticas do poeta e do intelectual, quanto representações eloquentes de nossas paisagens física e humana, social e cultural. Recortemos, por ora, duas dessas imagens.

Minas inconfidente: Das brumas de Vila Rica esgueira-se uma dilacerante figura do poeta: o poeta inconfidente. Como espectro de um passado mal revolvido e resolvido. Da atenta leitura das liras de Tomás Antônio Gonzaga, sobressai esta imagem: a do poeta encarcerado numa úmida masmorra – o olhar sem brilho, a barba crescida, os cabelos em desalinho. A alma, atormentada pela agonia de um processo em crime de lesa-majestade, recobra forças no canto à amada distante. Aparência exterior e mundo interior correspondem-se na expressão de um tumulto que desvela mais o homem que o poeta. A imagem assim debuxada, talvez jogo de cena ou calculado gesto retórico que objetiva atrair leitores para a causa de sua inocência, compunge e impressiona. Imagem reveladora da condição problemática do poeta e da poesia num espaço histórico-social periférico.

Prisioneiro, o poeta se entrega à faina da escrita, ao canto à amada. A candeia de azeite e sua chama bruxuleante exaurindo-se em escura fumaça que tinge a parede de negra tinta. A tinta com que escrever os compungidos poemas à amada. A haste de uma laranja a servir de pluma e as laudas de papel. Eis aí retratados os instrumentos do escrever, explicitadas as condições materiais de produção do texto poético. Essa cena pavoneou a imaginação do pintor João Maximiano Mafra, que dela produziu retrato do poeta preso para ornar a edição de Marília de Dirceu, de 1845, feita pelos irmãos Laemmert.

Entre a história e a ficção, entre o espaço da vida e o espaço do texto, concomitantemente história e ficção, vida e texto – nesse entrelugar, o poeta e a poesia inconfidentes. Imagens em circulação por entre os signos da cultura, sempre disponíveis para novas e imprevistas apropriações e releituras. Em Os sinos da agonia, de Autran Dourado, Gaspar recita para Malvina poemas de inspiração pastoril, na sala junto ao cravo. Poemas colhidos dos poetas locais, de Vila Rica. Num espaço teatral, as personagens autranianas velam e desvelam uma oculta trama, a trama entrecruzada da paixão e da história. Na obra Em liberdade, de Silviano Santiago, se entrelaçam poesia e romance, confundem-se história e ficção. Graciliano Ramos e Silviano Santiago recompõem a frágil imagem de um poeta inconfidente, desconstruindo a autoria e a história. Não mais o suicídio e o fracasso de Cláudio, mas a denúncia, a resistência e o assassinato. As delicadas relações entre o intelectual e o poder, ontem e hoje. Autran Dourado e Silviano Santiago retraçam, sob um novo olhar, essa imagem do poeta e da poesia inconfidentes. Imagem que se coloca como viva inscrição na nossa memória cultural, como cifra de um passado mal explicado, a que se deseja sempre retornar. Para se reinventar e se ressemantizar a nossa própria história.

Minas melancólica: Na poesia de expressivo grupo de poetas mineiros atuante na primeira metade do século 20 – Carlos Drummond de Andrade, Abgar Renault, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa, entre outros – destaca-se a figura do poeta melancólico. Metáfora esclarecedora das relações do poeta com o mundo moderno, essa figura revela o lugar problemático que cabe ao artista e intelectual no espaço da modernidade. Particularmente numa modernidade tardia, que parece se realizar de forma truncada e inacabada em espaços periféricos,como reflexo de um projeto de modernidade centrado,traçado nas metrópoles colonizadoras.

Envolve o poeta uma atmosfera melancólica marcada quer por imagens da morte e de um passado em ruínas, quer por vívido sentimento de tristeza, de ensimesmamento do eu, de angústia existencial frente ao fluir inexorável do tempo. Atmosfera que contamina também prosadores, romancistas e memorialistas mineiros, como demonstram narrativas de Cyro dos Anjos, Autran Dourado, Lúcio Cardoso, Pedro Nava.

Configura a existência de uma Minas Gerais melancólica, ruminando ensimesmada seu passado e interrogando angustiada seu futuro. Uma Minas que se constitui como contraponto crítico àquela Minas salvacionista cunhada pela política, por certa visão mítica da mineiridade.

Num dos poemas de “Lanterna mágica”, dedicado a Belo Horizonte, Drummond afirma: “Meus olhos têm melancolia/ minha boca tem rugas”. Trata-se de olhar que ativa um saber melancólico, calcado no fragmentário e no descontínuo. Saber crítico do mundo moderno, que instaura um distanciamento crítico em relação à racionalidade abstrata e totalizante, instrumental e técnica, atuante num espaço periférico. Racionalidade que fundamenta o projeto de modernização do Brasil levado a cabo pelo Estado Nacional pós 1930, ao qual serviram muitos intelectuais daquela primeira geração modernista mineira. Mas que, paradoxalmente, foi submetido a rigorosas críticas, por esses escritores e artistas. Como comprova trecho do poema “Endecha do funcionário no Palácio da Educação”, de Abgar Renault, revelador do desconforto do sujeito poético com o mundo moderno e sua racionalidade iluminista a serviço do controle e do cálculo:

 

Nada de prédio de vidro em que ar e luz entrem

e se espalhem

com um método minucioso que sabe cada canto,

cada mesa, cada arquivo, cada gaveta.

(…)

Não quero o novo, o grande, o claro, o alegre:

prefiro a sala velha sem luz, sem ar, sem água gelada,

o prédio velho, sem jardim, sem estátuas nuas,

sem peixes, sem nada,

nada do que de moderníssimo aqui existe,

porque, por menos que pareça, sou esquerdo,

antigo e triste.

 

Eis algumas imagens de uma Minas literária que convidam o visitante deste museu imaginário – o Memorial de Minas Gerais – à fruição estética e, principalmente, à reflexão.

 

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Praça da Liberdade, 640,
esquina com Rua Gonçalves Dias
Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil
30140-010 – (31) 3308-4000

Entrada gratuita

Horário de funcionamento

Quarta, sexta e sábado: das 10h às 17h30, com permanência até as 18h.

Quinta, das 10h às 21h30, com permanência até as 22h.

Domingo, das 10h às 15h30, com permanência até as 16h.

Agendamento de visitas
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