Avenida Amazonas

AVENIDA AMAZONAS

— Felipe Chimicatti

DE UM INVENTÁRIO DE FORMAS RANDÔMICAS, SURGE UM RETRATO DE CERTA ATUALIDADE


AVENIDA AMAZONAS, uma das principais vias de acesso de uma das maiores capitais brasileiras,condensa um amontoado de imagens que quando vistas de dentro dos veículos produz formas mais ou menos vagas e pouco precisas. Esse amalgamado urbano é produto formal de uma das primeiras cidades planejadas do Brasil. Representa, após pouco mais de 100 anos da sua construção, um estado das coisa ligado ao tempo, ao ostracismo, à monotonia da ideia da cidade-progresso, à aspereza e opacidade.

Os postes, muros, as inscrições textuais, as formas involuntárias, os locais provisórios, os pontos de passagem e retenção, a desconexão de certos objetos abandonados, descaracterizados; tudo evidencia uma certa precariedade dos modelos de sociabilidade. A ideia do trabalho consistiu em andar por alguns trechos da avenida atento, sobretudo, à escala das coisas preteridas. Nelas se depreende um pequeno retrato das metrópoles do país, de sua conformação territorial, da sua organização urbana.Na ocasião de sua fundação, Belo Horizonte adotou o nome dos Estados brasileiros como o nome de suas principais ruas e avenidas. A Avenida Amazonas, simbolizando muito pouco do que seria o Estado do Amazonas, serve como uma homenagem truncada, generalista, fora do lugar. Quando vista de perto, remete à uma ideia de conurbação, de loteamento desordenado, de ponto de passagem, de intervalo, de artéria urbana.

A metrópoles brasileiras encerram a melancolia da desigualdade, da expropriação, da destruição dos rios, nascentes e de suas coberturas vegetais. As avenidas, pontos uniformes de passagem transbordam a imagem do individualismo na qual cada carro transporta seu proprietário. A rede aérea de alimentação elétrica e os padrões urbanos constituem intervalos regulares. À cada 20 metros, um poste de cimento se ergue com aproximadamente10 metros de altura. E assim sucessivamente, do começo ao fim, num modelo que se reproduz por todo o país. Muitos fios soltos, pendurados e emaranhados traduzem uma ideia de risco. A en-ergia que alimenta as casas, o comércio e a indústria corre desapercebida acima das nossas cabeças. Do projeto inicial, das perspectivas gráficas de ordenação do espaço, surge um hiato entre aquilo que foi pensando e aquilo que se tornou.

A utilização contínua, diária, incessante, incontornável de um mesmo espaço cria um vício na perspectiva estanque de um projeto de uma cidade planejada. Milhares de pessoas, carros, motocicletas, ônibus e demais veículos circulam fazendo imensa pressão sobre essa epiderme impermeável de cimento. A feição meio provisória, meio improvisada, dá as coisas um aspecto de litígio. A impressão que fica é que a manutenção mínima do espaço acompanha uma lógica de economia máxima. Essa equação produz um espaço repetitivo, impessoal, acinzentado, cheio e embaraçado O signos urbanos, um século depois da fundação da ciadade, produzem uma espécie de presença que remonta o atual estado das coisas, da preservação à deterioração, do modelo urbano, de sua forma, de seu aspecto e densidade.

GRÃOS, FARPAS E ARQUIVO


AMAZONAS. Deste rio na região Norte do país, o mesmo que dá nome à avenida[1] que reúne as fotografias desta exposição, parece que nada sobrevive nos retratos urbanos realizados por Felipe Chimicatti. Ou quase nada. Há o espectro maldito de uma fronteira a oeste a ser dominada. Ao mesmo tempo que irrompe, do chão do futuro, uma força que deforma a pele de bloquetes de concreto com que forjamos uma responsabilidade ambiental insustentável. Por entre as imagens desta exposição, emergem restos dos sonhos de modernidade e progresso que orientaram planos e ações políticas desde a fundação da Cidade de Minas, em 1897. Essa avenida radial, cuja monumental abertura foi documentada pelo fotógrafo Wilson Baptista em 1941, numa icônica série que remete a uma paisagem lunar[2], fez parte das transformações implementadas pelo então prefeito Juscelino Kubitschek, entre 1940 e 1946. A ideia era estabelecer bases econômicas industriais e práticas sócio-culturais modernas para a cidade, como testemunha, entre outros projetos, o complexo da Pampulha, criado na mesma época. Pensada como interligação entre a zona planejada de Belo Horizonte e a Cidade Industrial, em Contagem, a avenida já prenunciava a dimensão metropolitana da capital mineira e consumou um eixo de crescimento que reuniu equipamentos de grande envergadura: o conjunto residencial JK (1951), na praça Raul Soares, projetado por Oscar Niemeyer, e os campi do CEFET-MG (1943-1959); posteriormente, as instalações do Expominas (1998-2006) e, ainda, o 5º Batalhão da Polícia Militar. Essas inflexões espaciais, no entanto, não são o objeto de interesse de Chimicatti na sua série. A Amazonas que emerge em suas imagens não é aquela monumental, evocada na homenagem moderna ao rio pela toponímia, ou aquela épica, construída por certa historiografia urbana. A Amazonas que emerge nas imagens de Chimicatti é partida, fragmentar e, contraditoriamente à sua origem urbanística de via integradora, seu aspecto é desintegrado, por vezes quase pó. Por vezes, quase só grão. De prata. Se as fotografias são cascas[3], não são aqui cascas de árvores de bétulas, e sim farpas, pedaços rotos, sobras de estruturas de tijolo, concreto, asfalto, ferro, vidro e plástico. As pessoas estão de passagem, entretidas no que parece ser uma grande travessia; é impossível alcançar seus olhos e compartilhar a apreensão daquela urbanidade. Numa combinação de flânerie moderna, deambulação surrealista e deriva situacionista, Chimicatti acaba por fazer-se um catador e, como no filme de Agnès Varda[4], faz emergir questões em torno de desperdício, desigualdade, exclusão, abandono. No entanto, também fiel ao espírito catador que forjou para si nas suas errâncias pela avenida, Chimicatti opera a transformação de corpos inertes em esculturas fotográficas. Se, por um lado, essas esculturas poderiam se desfazer em estilhaços de uma estetização do urbano, por outro, elas são insistentes e necessários documentos de um arquivo contemporâneo do antropoceno.

Junia Mortimer


[1] Gomes, Leonardo José Magalhães; Aun, Miguel. Memórias de ruas: dicionário toponímico de Belo Horizonte. 2. Ed. Belo Horizonte: Crisálida, 2008.

[2] Marquez, Renata. Urbanos fotográficos: encontros com Wilson Baptista. In: Marquez, Renata; Drummond, Marconi; Baptista, Paulo (orgs). Wilson Baptista: urbano fotográfico. Belo Horizonte: Edição dos Organizadores, 2018. p. 12.

[3] Didi-Huberman, Georges. Cascas. Tradução de André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 11.

[4] Os catadores e eu. Direção: Agnès Varda. França, 2000. 82 min.