Lygia Clark, nascida em uma tradicional família de Belo Horizonte e educada em colégio de freiras, foi uma artista inquieta e inconformada que sempre buscou libertar a obra de seus limites, da sua posição fixa na parede.
Nesse espaço o visitante pode conhecer um pouco da irreverência da artista que transformou profundamente o mundo da arte ao propor o envolvimento e a participação direta do público.
Texto de Ricardo de Freitas Lima, Projeto República – UFMG
Nascida numa remediada família belo-horizontina, Lygia Clark passou boa parte da sua juventude submetida aos rigores |da tradicional família mineira. Era de se esperar, então, que fosse educada sob os rigores da elite intelectual e política da capital mineira. A ex-normalista do colégio Sacré-Cœur de Marie, casada e mãe de três filhos, numa atitude improvável para os padrões, deu o primeiro passo para o nascimento da artista e o “sepultamento” da pacata normalista ao se mudar para o Rio de Janeiro em 1947.
O Rio de Janeiro da década de 1940 apresentava-se como capital não só política, mas também cultural do país. Foi lá que Lygia Clark se tornou aluna de Roberto Burle Marx. O renomado paisagista formado pela Escola Nacional de Belas Artes, naquele momento, ainda dividia sua atenção com os desenhos, cerâmicas e pinturas. Ao contrário do que se possa imaginar, Lygia Clark, mesmo sem experiência no campo acadêmico e artístico, não apresentou o receio, a timidez e a modéstia dos aprendizes, exibindo uma personalidade marcada pela autoestima e pela certeza do seu devir.
A ousadia sem dúvida foi decisiva para seu sucesso. Esse ímpeto pode explicar a “revolução” promovida por Lygia Clark, que não se embasou em conhecimento livresco para se manifestar artisticamente. Não dispunha de ferramentas teóricas para opinar, contestar ou transcender o estado da arte de então. Valia-se, sim, de sua mais sincera sensibilidade.
Após os primeiros ensinamentos e rascunhos, já nos idos de 1950, muda-se para Paris, onde conhece, trabalha e estuda com Fernand Léger, Arpad Szénes e Dobrinsky. Amparada pela experiência desses grandes nomes das artes plásticas europeias, ligados aos movimentos de vanguarda (Cubismo, Surrealismo etc.), inicia sua trajetória como pintora. É partindo desta categoria tradicional de construção artística que Clark inicia o seu trajeto de superação da arte rumo ao encontro daquilo que chamará de não arte.
Sua primeira exposição individual se dá pouco antes do seu retorno ao Brasil, em 1952. Menos de um ano mais tarde, as suas Composições, obras que interrogam o papel da linha e do plano como recursos plásticos, são premiadas na Exposição Nacional de Arte Abstrata. De saída, Lygia Clark já se coloca como uma artista ligada aos movimentos de ruptura e vanguarda.
Uma vez refutada a representação naturalista e tradicional, Lygia se envolve intensamente com contornos abstratos e geometrismos, orientada por uma forte influência da arte construtivista europeia. Nesse momento, adere à movimentação artística insuflada por Ivan Serpa conhecida como Grupo Frente. Na exposição de 1955 o Frente já mostra claramente sua proposta, unindo ao rechaço do figurativismo e brasilianismo fortuito a interpelação dos conceitos concretistas de Max Bill (máximo expoente do concretismo europeu). Propunha uma arte concreta – ao contrário do que se praticava em terreno europeu –, menos refém de critérios inteligíveis e lógicas matemáticas, ao tornar pública uma linguagem que, acima de qualquer coisa, se apresentava como um campo aberto à experimentação. Embalada pelas discussões do Frente, Lygia Clark aplica a proposta de desregramento da arte concreta ao eliminar de suas obras a moldura, que a partir de então passa a ser incorporada à própria obra. Esse movimento opera como uma força centrífuga, que lança a obra de Lygia Clark para o lado de fora, para a exterioridade da tela da pintura. A série intitulada Superfícies moduladas é a concretização das críticas realizadas pelo Grupo Frente.
Desde então, a artista paulatinamente modifica a sua produção numa trajetória de transformação radical da experiência em suas obras. Lygia buscava incessantemente um espaço mais orgânico, menos claustrofóbico para suas pinturas e esculturas. Alguém, ao se deparar com uma produção de Lygia Clark, cada vez mais presenciaria um estreitamento da relação entre obra de arte e público; entre espaço da obra e espaço real. Obras como Bichos (1960), Caminhando (1963) e A casa é o corpo (1968) são exemplos de trabalhos chamados vivenciais, que exigem a participação do espectador e confundem os lugares temporais e conceituais da relação arte-público.
Lygia Clark, a partir da experiência com Bichos,Caminhando e Obra mole, seguiu um caminho que se dividia em três direções na relação com o objeto artístico. A primeira direção apontava para a dissolução da ideia de colecionabilidade ou de valor de troca, uma vez que se valia de materiais corriqueiros e usados. Na segunda, o objeto só estaria pleno de sentido naquele momento exato da interação direta com o espectador. E, por último, a mente e o corpo passam a ser tão importantes quanto a visão na percepção do objeto.
Na primeira metade da década de 1970, Lygia Clark retorna a Paris, onde vive e trabalha até 1975 como professora na Sorbonne. Professora, não: propositora. Em meados dessa década, o objeto artístico produzido por Lygia Clark só se efetiva em sua complexidade e completude ao ser penetrado pelo espectador, que dali por diante seria chamado de participante. A artista buscava com os seus alunos experiências que almejavam destituir o olho de sua primazia no ato de fruição. O corpo, dotado de todas as possibilidades sensoriais, seria o lugar não só de experimentar o aparato artístico, mas também de efetivar a existência artística da obra. Dessa fase são as chamadas obras “individuais e introspectivas para diálogos interpessoais e para grupos”, como afirma Guy Brett. As principais são Corpo coletivo, Antropofagia e Baba antropofágica.
Seu retorno ao Brasil foi marcado pela continuidade dos experimentos sensoriais que colocaram a artista num lugar equidistante entre a arte e a psicoterapia. O resultado mais evidente dessa fase são os chamados Objetos relacionais, utilizados em sessões de terapia, na Estruturação do self (1976-84). A necessidade de estabelecimento de uma simbiose entre obra e participante produziu uma arte cinética ou dinâmica, em que artista, obra e participante formavam uma unidade constitutiva, uma mônada. A obra ali não se estabelece em sua forma física num estado de congelamento estático, de contemplação passiva; sua efetivação se dá na ocorrência, na interferência do espaço, dos conteúdos, pelos participantes. Dessa forma, a obra de arte existirá enquanto durarem aqueles momentos de interpenetração entre propositores, participantes, conteúdos, ideias, espaços e objetos. E se esvai no momento seguinte ao desmanche dessa espécie de “pacto”. A obra não só se torna dinâmica, mas também efêmera. O esvair-se da obra não quer dizer o fim daquela experiência, mas sim que ela retornou para o seu estado latente, para sua condição de possibilidade. Tudo se reerguerá com a conivência dos envolvidos.
Lygia Clark jamais deixou de ser uma artista para se tornar uma terapeuta. Suas experiências devem ser entendidas como um desdobramento do artista que durante todo o trajeto buscou superar a crise nas relações entre sujeito e objeto e problematizou as dicotomias dentro e fora, físico e metafórico, sólido e imaterial. E nesse percurso soube como poucos realizar o conselho modernista, deglutindo antropofagicamente as noções e conceitos, devolvendo-os modificados aos seus respectivos lugares planetários.
Lygia Clark morre em 25 de abril de 1988.
Praça da Liberdade, 640,
esquina com Rua Gonçalves Dias
Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil
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