Carlos Drummond de Andrade

Manequins confeccionados por Ronaldo Fraga trazem trechos dos poemas narrados por Drummond.

Uma instalação de blocos de livros representam sua obra.

Imagem: João Marcos Rosa

Drummond, poeta

Texto de Wander Melo Miranda – UFMG

 

Em 31 de outubro de 1902, quando Carlos Drummond de Andrade nasce em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, recebe de um “anjo torto” a tarefa de ser “gauche na vida”. Talvez por ser do signo de Escorpião, cumpre à risca o que lhe é assinalado. Jornalista, funcionário público e poeta, forma-se em 1923 na Escola de Farmácia e Odontologia de Belo Horizonte, depois incorporada à Universidade Federal de Minas Gerais. Mas não segue a profissão de farmacêutico, prefere ser “fazendeiro do ar”. Pelas mãos de José Oswaldo de Araújo publica, em 1921, seus primeiros trabalhos literários no Diário de Minas. Torna-se amigo de Milton Campos, Abgar Renault, Emílio Moura, Pedro Nava, João Alphonsus, entre outros, o grupo do Café Estrela. Para vencer a monotonia das noites vazias da capital provinciana, o poeta, na companhia de amigos, caminha sobre os arcos do viaduto de Santa Teresa, troca de lugar placas de advogados e dentistas, tenta atear fogo em bondes e combinações de mulheres no varal. “Pequenos incendiários sem tutano / de atear completas labaredas”, dirá mais tarde.

O jovem incendiário casa-se em 1925, ano em que funda, com Martins de Almeida, Emílio Moura e Gregoriano Canedo, A Revista, órgão modernista mineiro que tem a duração de três números. No ano anterior encontra Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade, que acompanham Blaise Cendrars em visita a Minas. Inicia a longa troca de cartas com o autor de Macunaíma, a quem dedica seu primeiro livro, Alguma poesia, de 1930. Publica Brejo das almas em 1934 e se muda para o Rio de Janeiro, onde ocupa o cargo de chefe de gabinete de seu amigo Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública.

A atividade burocrática não é uma pedra no meio do caminho de sua vida literária. No Rio publica com sucesso Sentimento do mundo, em 1940. É colaborador da Revista Acadêmica, de Euclides e do Suplemento Literário de A Manhã. No mesmo ano em que aparece seu livro mais engajado, A rosa do povo, de 1945, surgem pequenas pedras: deixa a chefia do gabinete de Capanema e a convite de Luís Carlos Prestes aceita ser coeditor do diário comunista Tribuna Popular, do qual se afasta por discordar de sua orientação. Volta para o serviço público, como funcionário da diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a convite do amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade.

A partir da década de 1950 participa mais ativamente da imprensa carioca, escrevendo crônicas e textos curtos, que irão compor livros como Fala, amendoeira e Cadeira de balanço. Continua a ser o grande poeta que sempre foi com Claro enigma (1951) e a trilogia memorialística em verso inaugurada em 1968 com Boitempo. Consegue unir como poucos poetas de língua portuguesa o elogio da crítica e a admiração popular. Em 1987, é homenageado com o samba-enredo “O Reino das Palavras” pela Estação Primeira de Mangueira. Morre em 17 de agosto do mesmo ano, 12 dias após o falecimento de sua filha Maria Julieta.

Com o passar do tempo, sua presença na cultura brasileira é cada vez mais decisiva, como a confirmar, de modo ainda meio gauche, que a questão do sujeito moderno tem múltiplas ramificações, que vão do amor e da morte, do indivíduo ao clã, da sociedade à política e à nação, da memória à poesia.

O impasse a respeito da noção de identidade do sujeito moderno, que Drummond compartilha com Baudelaire, revela-se pela presença recorrente da memória na obra do poeta itabirano. “Há um abrir de baús/e de lembranças violentas, diz em “Viagem na famíla”, poema de José (1942). A reminiscência é o lugar de consciência biográfica e histórica do presente, a partir de imagens geradas pelo que falta ou se perdeu.

O lastro da história pessoal não é a relação entre evento e seu registro no decorrer do tempo homogêneo e vazio, mas a capacidade de estabelecer correspondências inesperadas entre o passado e o presente, ou entre o novo e o velho. A via escolhida é, muitas vezes, a adoção deliberada do ritmo diferenciado da “vida paroquial”, como forma de questionamento da sociedade urbano-industrial e do mundo tecnológico. Não se trata de retorno passadista “às tábuas da lei mineira de família” ou ao “Antigo Testamento do Brasil”, conforme versos de Menino antigo (1973), mas de comentário e distorção irônica de seus códigos, fazendo com que tudo resulte como se fosse visto o tempo todo pela primeira vez.

Apropriar-se do curso das coisas é resignar-se a perdê-las, sabe-o bem o poeta, para quem o texto é o lugar da significação e da morte, até chegar ao ponto “onde é tudo moído/no almofariz do ouro”. É o que se pode ler de várias formas e em poemas muito distintos como os de “Selo de Minas”, em Claro enigma (1951) (“Toda história é remorso”, conclui o poeta) ou em “Estrambote melancólico”, de Fazendeiro do ar (1954), “Documentário” e “(In)memória”, da série de Boitempo (1968), entre inúmeros outros.

A tensão entre presença e ausência, inerente à constituição da imagem enquanto tal, configura a escrita poética como um movimento de dupla aproximação: ao que está distante no tempo, ao que está longe no espaço — rastros da experiência individual e social tornada matéria de memória e poesia.

Rastros são vestígios de passagens, mas que permanecem como restos que remetem a dois registros temporais heterogêneos. Para poder funcionar como substituto, um rastro deve ser um sinal deixado por alguma coisa, sendo algo presente, cujo contexto passado não existe mais. Além disso, o rastro existe apenas para quem considera tal sinal como signo presente de uma coisa ausente, como vestígio de uma passagem que também não existe mais. Seguir um rastro, ou escrever poemas, significa efetuar a mediação entre o não-mais da passagem e o ainda do signo.

A poesia de Drummond realiza esse delicado e firme movimento da linguagem em direção ao outro em que o poeta se desdobra e que encontra no leitor sua imagem multiplicada. Configura-se, enfim, como enigma que “a máquina do mundo” continua a nos propor sem cessar. Ou como a lembrança-clarão do cometa de Halley, visto na infância, “iluminando de ponta a ponta/a noite da vida”.

 

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