As primeiras perguntas que me fiz, e que talvez você também já tenha se feito no início desta nossa experiência, foram: “Por que rezar na caverna? Quando essa tradição começou? Como foi o encontro com essa caverna?”. Para respondê-las eu precisava simplesmente perguntar, mas como perguntar e a quem perguntar necessita um cuidado e respaldo científico. Portanto, foi elaborado um roteiro de entrevista com perguntas semiestruturadas com o intuito de guiar minha conversa (pesquisadora/Iara) com a comunidade.
Não se pode falar de um único mito fundador ou de uma única versão sobre a reza na Lapinha. Durante as entrevistas, diferentes histórias compostas por símbolos e sentidos foram apresentadas e reinventadas em contextos e experiências.
No Brasil, o catolicismo europeu, no processo de colonização e ocupação territorial, se configura de forma popular, assumindo características próprias. Os ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Romana se misturam com conhecimentos locais que formam um sincretismo religioso. Territórios que após a ocupação permaneceram isolados, sem assistência até mesmo da igreja, alimentaram sua fé com os recursos que lhes eram disponíveis. A história do município e da comunidade de estudo, são exemplos deste processo de ocupação do território brasileiro.
A Lapinha chama a atenção por suas dimensões, formas e cores, sua abertura orientada a oeste permite a entrada da luz do sol poente, iluminando seu interior e criando sombras através das folhas das árvores. Nas frias manhãs, a serração adentra a gruta situada no alto da vertente cobrindo seu fundo, como se saísse fumaça por sua “boca”. Tais fenômenos enchem os olhos e o coração de um povo formado pela fé popular, criando a hierofania da caverna, o sagrado manifesta-se como realidade, a caverna revela algo que já não é só a caverna física e sim algo sagrado (ELIADE, 1992). Portanto, é a percepção sensível do homem aos fenômenos da natureza que sacraliza os lugares naturais e a nós geógrafos revela a geograficidade.
Sentimentos de acolhida, bem estar, paz, despertam afetividade, criam topofilia. Pensar na impossibilidade humana de construir tal obra da natureza, fortalece a ideia de que uma força, um poder maior, sobrenatural, ali habita. O catolicismo popular define a expressão cultural do lugar e recria temas bíblicos universais com temas locais. A fé no Senhor Bom Jesus da Lapa se liga à hierofania da caverna. Jesus crucificado lembra a redenção, o sacrifício daquele que se entregou à morte, cujo sepulto foi uma caverna e ali ressuscitou.
Adentrar a caverna é estar em contato com a Terra, ao útero materno, quando saem, é como se fossem renascidos. Segundo Dardel (2015), vir ao mundo é se destacar da terra, sem romper, porém, com o cordão umbilical pelo qual a terra nutre o homem. Essa experiência mítica expressa nas cavernas, representa lugar de nascimento, renascimento, morte e retorno. A vida surge pelas forças vitais da terra e a terra se retorna com a morte. Formadas no interior das montanhas, simbolizam as conexões entre o céu e a terra, onde é possível a comunicação com Deus ou, nas palavras de Eliade (1992, p.19), “onde possa existir uma ‘porta’ para o alto, por onde os deuses podem descer à Terra e o homem pode subir, simbolicamente, ao Céu”.
A pessoa religiosa vê e entende os elementos da natureza como obras divinas, a fé popular pautada em conhecimentos locais, mitos, histórias, estórias, sincretismos e imaginação, explicam os mistérios da vida e da natureza. Acostumados à sua paisagem, deparar com uma caverna instiga essa imaginação, reforça a fé e o sagrado se revela, assim, tudo passa a fazer sentido para o fiel. O que compreendemos como subjetividade é transferida às realidades geográficas e o indivíduo se vê inferior à força divina que se manifesta no ambiente, reagindo em forma de ritos, adoração e consagração (DARDEL, 2015, p.50).
“Lá é um milagre, né? Um milagre de Deus a gente ter uma coisa tão importante no lugar de nós. Porque aquilo ali é mesmo um milagre de Deus. Uma pedra abrir e formar o que formou a Lapinha, é mesmo uma coisa abençoada mesmo, de Deus. Por que como que aquela pedra foi ocada sem ninguém fazer ela? Deus fez. Já fez aquilo ali, é uma coisa de ver e ficar impressionado. Porque virou uma gruta, sem ninguém pôr a mão pra fazer. Porque você vê, uma casa é feita porque o homem tem que fazê-la, né? Lá não, lá Deus fez e deixou pronta pra todo mundo vê”
Teresa, Produtora Rural Aposentada
“Iara: O que significa a gruta para o grupo e para você?
Valdete: O encontro familiar, encontro religioso.
Iara: O que sente dentro da gruta?
Valdete: Emoção muito grande, né? De você ver uma coisa daquela…Que é o que conheço da minha vida é essa, nunca conheci outra. Pra mim é muito gratificante, é muito gostoso ficar lá dentro. Eu que trabalhei muitos anos ali tirando terra, limpando aquilo ali… Então é muito marcante, sinto muito prazer em estar ali.
Iara: Porque você acha que as pessoas vão até a gruta?
Valdete: Curiosidade de conhecer porque nunca conheceram. Outros vão em busca de fé, de cumprir promessas. E vê a beleza que tem ali. Muitos vão e comentam com outro, aí o pessoal vai conhecer.
O que ela comemora é a devoção ao menino Bom Jesus da Lapa. E por ser uma coisa que não existe no município. Porque a onde que o pessoal conhece uma coisa maravilhosa igual àquela, é só aqui. Só aqui que tem. E é onde o pessoal tem condições de conhecer, que é no local, que é aqui dentro do município”.
Valdete, ex-vereador, outubro de 2019.
As entrevistas exigem por parte do pesquisador “um ouvir todo especial”, transformando o informante em interlocutor. Esta relação, um tanto delicada, se torna mais leve se transformada em relação dialógica, entre o ouvir e o ser ouvido. É pela entrevista que conhecemos a vida em comunidade, os mundos vividos e as relações, compreendendo o fenômeno a partir dos que o vivem.
Embora consciente de estar trabalhando com fragmentos de falas e estórias no contexto de uma conversação, o esforço empregado vai no sentido de juntá-las a partir de uma síntese que é sugerida pelo seu conjunto (STEIL, 1996). Ainda que as estórias contem sobre a Lapinha e o surgimento da Festa, são também histórias sobre as pessoas e sobre a realidade em que vivem. Segundo Eliade (1992) uma vez apresentado ao grupo, o mito torna-se verdade e é compartilhado. Nas palavras de Dardel (2015), o mito é o que valida e constrói a realidade.
Vale dizer que minhas experiências enquanto pesquisadora não se diferem ou se desassociam das minhas experiências pessoais, pelo contrário, ambas se complementam, e foi assim em entrevistas e em campo que realmente me vi, aprendendo com as pessoas da terra além do objeto pesquisado. Acredito ser o que se espera de pesquisadores humanistas.
De acordo com Claval (2009, p.26), a Geografia Humanista se liberta do “peso que a oprimia”, se permitindo falar com liberdade do frescor do orvalho, da pureza de certos céus, dos cheiros, de beleza, das sensações, com poesia e romance, assim, permite nos estudos apresentar nossa visão sobre as sensações e percepções que crianças, idosos, jovens, homens e mulheres possuem com seus espaços-mundos-vividos, bem como de nossas próprias experiências e aprendizados no processo de pesquisa.