A experiência religiosa

A partir dos anos iniciais da década de 1940, em todo dia 24 do mês de maio e 12 de outubro, a comunidade e comunidades vizinhas proferem a reza do santo terço dentro da caverna. Uma tradição iniciada a partir da promessa do senhor Joviano de Afonso, morador da comunidade Mutuca. Como a caverna fica dentro do terreno que era do Sr. Faustino Norato Gonçalves (pai de Luís Veriano Gonçalves, Sr. Luquinha), ao ser comunicado da ida a Lapinha para cumprir a promessa, Faustino passa a acompanhar Joviano em sua peregrinação. Assim, é atribuído aos dois o início da tradição de rezar dentro da Lapinha.

Fonte: Gilda Gonçalves e Silva e Antônia Julia Avelino, s/d

Eliade (1992) afirma que, em diferentes culturas, o Deus ou os Deuses criaram o mundo e todas as coisas. Depois, como se estivessem esgotadas as energias após sua criação, retiram-se ao céu, em um lugar longe dos homens, em um nível celestial superior. Os Homens, porém, lembram-se dele e lhe imploram piedade e lhe suplicam pedidos e respostas. A imagem é a referência para este encontro do Deus com as pessoas e os lugares sagrados é onde este encontro possui  maior probabilidade de acontecer do que em outros lugares comuns ou profanos. Desta forma, ao se revelar sagrada àqueles que têm fé, a Lapinha passa a ser o centro do mundo – o totem – local onde ocorre a hierofania e para onde os que crêem devem ir em momentos de súplica ou adoração.

 

A notícia se espalhou e várias famílias das comunidades do entorno (Mutuca, Água Limpa e Cipó) passaram a se reunir no sopé do morro da Lapinha para acompanhar os dois senhores na reza do terço. As “romarias” eram realizadas a pé ou a cavalo e muitas vezes chegavam a 8 ou 10 km da praça Martinópolis, em Bagres:

“Quando era dia da reza, todo mundo arrumava e ia. Descia pra lá. Juntava lá na praça e subia, aquele montão de gente”
Joana

Subiam em procissão, “pagando” promessas e em penitência, cantando e rezando. Os que empunhavam facões iam na frente tirando o mato e limpando o caminho. Os que vinham atrás, carregavam garrafas de água, suco, biscoitos de polvilho, laranjas e bananas. Iam motivados a rezar e fazer a partilha do lanche no final da reza do lado de fora da gruta, sentados no gramado à sombra das árvores. Com a abertura da estrada, calçamento e acesso a automóveis, permitiram melhor acessibilidade para que as pessoas mais velhas ou com mobilidade reduzida continuassem suas práticas religiosas. Aos mais jovens e velhinhas(os) com mais força nas pernas, a subida é a pé, em grupos ou individualmente, debulhando o terço.

 

Nessa geografia mítica, a água também aparece como sagrada. Como aponta Dardel (2015, p.50), “em todas as religiões a água intervém como fator de regeneração, de aumento no potencial da vida. (…) Particularmente ativa na chuva fecundante, a água se torna facilmente um símbolo”. Em longos períodos de seca, recorria-se ao Senhor Bom Jesus da Lapa para que chovesse: 

“Quando ficava esse solão assim, a gente ia lá rezar, qualquer mês assim, fazendo prece pra chover. E chovia. E lá dentro dela tinha água. Só vendo que beleza que era. Agora secou tudo. Chegava lá, tomava dela, ela era num canto escuro assim, um poço de água clarinha. A gente bebia”
Joana, produtora rural aposentada da Mutuca
“Nessa época assim, agora que está esta seca, juntava a molecada toda, carregava água de cá dos Bagres, enchia o super litro, e levava pra molhar o cruzeiro lá em cima. E pegava a pedra de dentro d’água de cá e levava pra lá, e a pedra seca de lá, punha dentro d'água aqui. Fazia penitência, carregar água pra molhar o cruzeiro, pra Deus mandar chuva. E nessa época Ele atendia mesmo, que eles faziam e a chuva vinha mesmo”
Tereza, produtora rural aposentada de Bagres

A Lapinha é tida por muitos como uma igreja, cujo altar “mantém unido, cimenta um todo coerente, lá se revela o mistério da via cósmica, dele toda a geografia, espaços sagrados e espaços profanos, recebe sua estabilidade, sua unidade, sua vida” (DARDEL, 2015, p.61). É ele o ponto fixo de comunicação entre o céu e a terra, onde se direciona para as orações, o centro do mundo, ponto de ancoragem, lugar de reencontros – da comunidade e com o sagrado.